INTRODUÇÃO AOS SEIS PERSONAGENS: 1ª APROXIMAÇÃO

Escrito por Martha Ribeiro.

 FOTO HISTORICA DOS SEIS PERSONAGENS

Começamos mais um dia de treinamento. Desta vez com a peça Seis Personagens a Procura do Autor nas mãos.

Iniciamos um breve relato, onde cada um dos atuantes discorreu sobre suas impressões preliminares a respeito da peça e dos Seis Personagens (doravante identificado aqui como OS SEIS). Direcionamos a discussão eliminando qualquer tipo de análise psicológica e semântica que poderia suscitar uma leitura clássica da peça. NOSSO OBJETIVO É PESQUISAR A DRAMATURGIA PIRANDELLIANA ATRAVÉS DA CORPOREIDADE DOS INTERPRETES. Aproximando os aspectos embrionários do pensamento de Pirandello, do esfumaçar entre arte e vida, ao contexto de criação textual da PERFORMANCE.

Observei a necessidade dos atuantes, nesse mergulho que iniciamos, em buscar um diálogo entre suas experiências interiores e a vivência dos SEIS. Multiplicando assim a realidade em nós. Não interessa os fatos descritivos, mas os DESEJOS  QUE PASSAM PELO CORPO. Pergunto aos atuantes: O que nos move? Como percebemos em nossos corpos a experiência capital dos SEIS? isto é, O INCESTO?

Observo que a experiência se decanta pela troca, pela partilha do sensível, pela lembrança do detalhe concreto, a partir de uma memória física. Não se trata de informação, mas de vivência, que tanto pode provir da reminiscencia de algo que vivemos ou de algo que ouvimos, e que se aderiu em nossa pele. O que interessa é a memória-corpo ou o corpo-memória, os afetos e os perceptos.

Enfatizo que é inegável a problemática do incesto no autor. Trago à memória a história familiar de Pirandello: sua esposa, mentalmente perturbada, o acusara de afetos incestuosos em relação à filha. Internada em um manicômio permaneceu lá até o fim da vida. Essa relação conflituosa entre homens mais velhos e mulheres que podem ser suas filhas, se repete ao longo de sua dramaturgia. Mas não nos interessa aqui os aspectos psicológicos do conflito, mas a sexualidade, os corpos decadentes, o desejo, a dor, a tortura, o prazer. Tudo de concreto que perpassa pelo CORPO.

O que os SEIS tem a nos revelar? O DESEJO BRUTAL de reviver na CARNE a memória de alguma coisa que aconteceu em algum lugar, em algum tempo. O que permanece é sempre o DESEJO DA CARNE. A vontade dos SEIS em materializar suas experiências, evoca a nossa própria existência, evoca tudo que há de humano em nós. Se Pirandello buscava a redenção da dor e da sexualidade com os SEIS, questionamos: o que nosso CORPO PRECISA DIZER? O QUE HÁ DE URGÊNCIA EM NÓS?

Leio em voz alta um trecho do meu livro, “Luigi Pirandello: um teatro para Marta Abba”: “E como fazer isso representando…? Vivendo? Trazendo aquilo  que há de mais íntimo em nós mesmos, a nossa verdade ou a nossa percepção da realidade. Buscamos o teatro enquanto celebração da vida, da arte, em sua dimensão cruel.

Fizemos, então, a leitura em conjunto de “Os seis personagens à procura de um autor”.

Pergunto: O que vamos começar a trabalhar a partir de agora? Nossos desejos, nossa sexualidade. Não é o fato e sim a experiência que nos interessa. Qual é a verdade? A verdade não importa e depende muito do que você quer revelar. Assim, proponho que cada um deles se aproprie dos seis personagens. Trata-se de uma pesquisa a partir de nossa corporalidade. Os SEIS nascem da concretude do nosso corpo. Pensem cada um deles como um PRISMA, são várias faces, não importa um aspecto psicológio, mas o DESEJO que cada um de vocês irá trabalhar.

Passamos então para os exercícios de treinamento. O atuante Luciano propõe um breve aquecimento para darmos início ao trabalho.

luciano exercicio

Luciano:

(Proposições, exercícios, criações e reflexões sobre o ofício do ator/performer)

4º Encontro – 04/04/2013 – Solar do Jambeiro / Niterói

Jogo com cadeiras: espalhadas pelo espaço, as cadeiras, compõem um novo ambiente – distinto da corriqueira sala de ensaios vazia (que no nosso caso não é tão banal, afinal estamos num prédio histórico com paredes, piso e lustre imperiais).

Assim, com todos os participantes caminhando pelo espaço, deve-se instalar um ambiente de sensibilização: olhar atento aos outros jogadores, ao espaço (enquanto estrutura arquitetônica, enquanto espaço de jogo, enquanto lugar ocupado por corpos); os participantes devem também se atentar para a relação do peso do corpo no contato com o chão – percebendo como os pés tocam o solo durante a caminhada; assim também, liberar a respiração, para que siga um fluxo do ritmo e da dinâmica corporal gerados por essa atividade.

Empregam-se variações no ritmo (com cada vez mais velocidade) mantendo, sobretudo, as primeiras qualidades indicadas (contato visual, percepção do espaço, peso, respiração). Depois de alguns estímulos mais pontuais para uma dinâmica mais enérgica, com mais velocidade, dá-se o sinal de parada, de quebra, um “stop”- aqui então, vinculado ao ato de sentar-se numa das cadeiras. A quebra deve representar apenas um recorte, uma fotografia, do instante da atividade em sua máxima aplicação de energia e, nessa quebra, a energia anterior deve ser mantida internamente no corpo do ator como se pulsasse na mesma vibração e mantivesse o ator pronto para seguir na atividade (dessa forma, mantendo seu estado de concentração, energia, percepção espacial e das relações com o olhar).

Nesse estado, de concentração intensa e com a energia interna pulsante, os atores devem trocar de lugar entre as cadeiras espalhadas e os que ficaram de pé devem encontrar um lugar para si nesse instante. No entanto, realizarão essas trocas sem nenhum estímulo exterior, ou sonoro, farão apenas através do contato visual (da energia, da relação que se estabeleceu no grupo desde o início da atividade).

Quando essa energia, esse estado de concentração, se dissipar deve então ser retomada a caminhada num crescendo de energia, buscando recuperar os elementos alcançados – a cada parada e início do jogo de trocas de lugar, os atores devem buscar formas de manter a energia, a concentração e a relação com o outro.

A proposição aqui é trazer toda a atenção e disposição dos atores para o ambiente de trabalho e, em sequencia, de criação. Ao mesmo tempo em que desperta seu estado físico, alinhando seu caminhar, desenvolvendo uma relação de peso e composição do corpo no arranjo entre coluna, pernas e pés, percebendo e expandindo suas possibilidades respiratórias, o ator também passa a se ambientar com o espaço e se relacionar com o grupo – criando uma energia coletiva necessária para o trabalho de criação.

 luciano elemento

Partimos em seguida para o trabalho sobre a partitura, com um novo elemento: o objeto de valor pessoal sugerido no último encontro. Seguem as observações de minha assitente Úrsula:

Úrsula: “Observo que todos estão muito concentrados. Preocupam-se em escutar a musica e permitir que ela contagie seus corpos e as suas ações. Aos poucos, vão interagindo com seus objetos. Augusto interage com uma longa e pesada manta. Luciano arrasta uma mala. Jesse jogou um pano sobre os ombros. David trouxe um sapato. Veste-os de um modo estranho, extracotidiano. Amanda veste um longo vestido. Henrique se enforca com seu objeto. Thiago brinca com uma meia em suas mãos. Camila esquece novamente a cadeira. Interessante sua corporalidade, mas ainda não compreendo a resistência em elaborar os elementos da partitura em relação à cadeira. Ela embarca numa viagem muito particular, intensa, seus movimentos são sempre extracotidianos, por vezes animalescos. Ela joga com o equilíbrio/desequilíbrio do seu corpo ao caminhar sobre o sapato alto. Promove um certo tremelique interessante com o corpo. É, neste momento, bastante cinematográfica. Parece-me um pouco alheia a todo o ambiente a sua volta, como se estivesse em uma redoma de vidro.  Muito intensa, no entanto”.

partitura3

Úrsula: “Amanda desenvolve a sua partitura de forma limpa e vai fundo nela. Muito concentrada, lenta e cuidadosa em seus movimentos. Jefferson suaviza sua partitura e suas ações. Doce em cada movimento e muito compenetrado. Natalia Queiroz me parece estar, ainda, psicologizando um pouco. Camila também. Anatália está mais presente e mais concentrada com relação aos outros dias de trabalho (e de olhos abertos!!!). Muito entregue e muito dedicada. Sua composição cresceu bastante. É evidente que trabalhou em casa sobre a sua composição. Henrique enforca-se e permanece no chão, estirado. De longe não consigo identificar qual é o objeto precisamente. Seu imaginário é muito fértil e o vejo ilustrando uma historinha. Thiago em algum momento me parece estar fazendo o mesmo. Muito interessante o balanço que Augusto faz com o corpo para tentar sair da cadeira. Alex interage com um barbante. Vejo que tanto ele como Ricardo apresentam estruturas um tanto longas e complexas.  Na verdade, não consigo visualizar uma estrutura e sim ações soltas, improvisadas naquele momento. Acho que dificilmente eles conseguiriam reproduzi-las. Mas, como eles não puderam estar presentes na última aula, não há muito o que exigir. Natalia Queiroz também se suicida com um barbante vermelho no pescoço. Ela trouxe também um fone de ouvido. Muito interessante este objeto. Ela dança sobre a cadeira, como se estivesse escutando as músicas, isolada do mundo. Num dado momento, não peguei esta transição, ela se enforca com um barbante ou tecido. Cantarino também me parece muito calma, muito presente e entregue. Há algo de muito delicado em tudo que ela faz. Ela se doa ao exercício. Seu objeto: um pano ou lenço. Vejo mudanças grandes na partitura do David. Acrescentou muitas outras ações? Não pude observá-lo da outra vez, pois estávamos fazendo o exercício juntos. Lembro apenas da Martha comentando que ele havia construído poucas ações. E todas muito simples. A partitura de Gabriel cresceu muito. Observo-o mais seguro e mais preciso. Acho que a utilização de um objeto que evocasse uma memória pessoal para alguns funcionou de forma caricata. Observo que alguns procuraram forçar, bombear um sentimento, ao invés de se preocuparem com as ações, com os elementos dos viewpoints que trabalhamos”.

partitura7

COMENTÁRIOS DA MARTHA

Úrsula: “Martha dá início elogiando o trabalho executado pela Camila. Diz que ela conseguiu fazer o mínimo que foi o máximo. Com uma estrutura minimalista, ela conseguiu transmitir uma energia poderosa. Não havia praticamente movimento algum. Considerou sua composição ideal para os seis personagens. “O que achou de diferente em você?”, pergunta à Camila. Ela responde que pensou no que ela estava vivendo e não procurou se preocupar com os movimentos. Ela se concentrou nas suas emoções, acreditando que o resto entraria em consonância. Diz que encontrou muita coisa nela mesma enquanto estava fazendo o exercício”.

partitura2

Úrsula: “Martha evita revelar a sua percepção pessoal a respeito do impacto do objeto Salto Alto. Preocupa-se em enfatizar o quanto o desequilíbrio promovido pelo salto alto, transmite algo de uma memória e natureza física muito interessante para o nosso trabalho. No caso da Natália Queiroz, elogiou também, o fone de ouvido. Comenta que este objeto traz uma corporeidade que também nos interessa. Contribui para um certo deslocamento no espaço. O fone pode nos desligar do mundo externo e enfatizar nossa presença física: “Tivemos, portanto, duas imagens muito interessantes para o trabalho. O que está em jogo é o não-dito, aquilo sobre o qual não falamos, mas que DESEJAMOS SENTIR. Solidão e isolamento. É exatamente isto que o fone de ouvido nos traz“, diz Martha.

natalia elemento

Úrsula: “Jefferson faz uma reflexão sobre o seu exercício e nos conta que tentou colocar a sua intenção sobre a cadeira ou o cordão. Descobriu este caminho durante o exercício. Algo que o instante presente nos instiga a realizar. Algo surgiu durante o exercício. Penso que, pelo que pude ver, ele foi realmente a fundo”.

Úrsula: “O sapato cria um simbolismo interessante, diz Martha, a respeito do objeto escolhido pelo David. Elogia também a forma com a qual cada um dos participantes, que trouxeram um pano, um manto ou um lenço, trabalharam sobre seus objetos de modo  tão distinto. Para alguns deles, este objeto ampliou os gestos, promoveu uma abertura, sobretudo em Augusto, enfatiza Martha”.

David elemento

Úrsula: “A respeito do trabalho da Amanda e a escolha de seu objeto, o vestido, Martha ressalta que ele pode ser ainda melhor explorado. Elogia a sua trajetória, o seu percurso e a sua composição, que é muito intensa, na sua opinião. “Que ato é este de tirar ou colocar este vestido? O que você pretende? O que este ato significa pra você? Ele te abre ou ele te fecha para o momento? Para o mundo? O que esse vestido desperta em você?”.

partitura6

 Úrsula: “Com relação à composição do Thiago, Martha elogia a sua concentração, mas observa que ele ainda não conseguiu se libertar totalmente da construção de historinhas. Ele mesmo comenta que a cadeira de uma certa forma atrapalhou o seu imaginário, que também é muito fértil. Segundo ele, seu objeto o deixou embarcar em uma história pessoal”.

Úrsula: “Martha aponta, ainda, que a bolsa trazida pelo o Luciano dificultou o desenvolvimento de seu trabalho. Ele perdeu a qualidade anteriormente conquistada. Diz que o objeto atrapalhou e, ao mesmo tempo, ficou em segundo plano. Ele concorda e diz que, na verdade, logo no início do exercício, ele percebeu que ela deveria estar cheia. Admite que simulou seu peso durante o exercício e perdeu a concretude ao tentar criar uma plasticidade”.

Úrsula: “Martha destaca que o Ricardo trabalha de forma primitiva o desejo, e isso é bom! Pede que ele radicalize mais o cinto como objeto de tortura. E pergunta: “Por que você se amarraria nesta cadeira? Permaneça concentrado nisto. Procure não representar, não criar subterfúgios, ficções”. E continua: “Quando vocês estiverem dissimulando, parem. Voltem, procurem se concentrar e pensar na estrutura que vocês estão desenvolvendo”.

Finalizamos o dia de treinamento pedindo aos atuantes que continuassem treinando a partitura, em diálogo com um dos seis personagens, sem julgá-los!

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