CADERNOS DE DIREÇÃO

Escrito por Martha Ribeiro.

CADERNOS DE DIREÇÃO

1ª Semana

 

O mergulho na dramaturgia de Pirandello a partir da linguagem contemporânea pode parecer à primeira vista um paradoxo, já que o autor está vinculado a um horizonte de composição dramática no qual o personagem possui uma força extraordinária; e no caso de Pirandello observa-se um radical desejo de eliminação do ator para a autorrepresentação do personagem, única saída para se preservar a vida da poesia dramática (embora o autor seja consciente sobre a impossibilidade de tal desejo; daí o drama dos “Seis personagens a procura do autor”).

Mas é preciso notar que Pirandello em seus últimos anos muda consideravelmente de posição, no que se refere a conturbada relação ator/personagem, redimindo o ator, dando-lhe um poder quase divino, pois capaz de absorver a poesia da arte convertendo-a em matéria dramática. E mais do que isso, constatando na arte atorial um precioso espaço para laboratórios de construção e experimentação dramatúrgica. A forte paixão do autor pela encenação o faz reconhecer no ator a chave para a materialização de suas ideias. Para Pirandello seus personagens não representam pessoas, não vivem a realidade cotidiana – embora se assemelhem muito aos homens-, e o trabalho do ator não será desaparecer por trás do personagem, como na estética naturalista, na qual o ator deve “encarnar” o personagem. Este ator deve “’esvaziar-se” completamente, se libertar de tudo que é seu, de sua personalidade, de seus hábitos, para enfim receber, de uma esfera superior, o ser da arte.

Como dirá Claudio Vicentini, grande estudioso de sua obra, Pirandello entende o processo de interpretação como um ato de possessão completa e absoluta, dando ao ato cênico um caráter mágico-ritual. O livro, a dramaturgia, seria uma espécie de livro “sagrado”, mítico, para iniciados, evocando essas entidades que pertencem a uma outra dimensão, uma ordem superior, antiga, ancestral. Mas a possessão do ator pelo personagem só é possível se o ator deixa de representar, se abandonar suas máscaras e se entregar ao rito. Mas na visão de Pirandello a garantia do ator ainda é o personagem, o texto escrito, garantia que não o deixa o ator ser arrastado pelo improviso diletante e rasteiro.

Esta visão ousada nos permite pensar numa via de treinamento para o ator que não seja mais estabilizadora. Ao invés de estabilizar essa conturbada relação ator/personagem, buscando soluções precárias de entendimento entre as partes, nos treinamentos do Laboratório iremos desequilibrar radicalmente essa relação, a ponto de dissolver a ideia de personagem.

Paradoxo? Não, pois embora o processo criativo de Pirandello, de entendimento da cena, ainda estava muito preso à ideia de autor, por outro lado, em seus últimos textos, a distância entre ator e personagem cada vez se encurtava mais, e digo isso, a partir da relação criativa e intensa que o autor teve com Marta Abba, sua atriz predileta. Uma simbiose que não deixava clara essa separação, ao contrário, que a anulava, num processo de incorporação Abba-Personagem, progressivo, radical, incorporando ao texto, a própria Marta, o que sugere uma dissolução clara do personagem e do ator para a ideia de Performer (ainda que tal proposta se observe somente em poucas passagens do texto, como por exemplo, o monólogo final da Atriz em Trovarsi). Para um estudo mais completo sobre esse ponto consultar meu livro “Luigi Pirandello, um teatro para Marta Abba”.

A partir destes conceitos, entendemos que o caminho para o treinamento do ator, para a busca da via criativa, esteja no aprofundamento da sua verdade interior, no estudo de uma partitura física e expressiva que dê forma material a essa verdade, independente do personagem, ou da dramaturgia. Então, poderíamos perguntar, para que serve o personagem, ou a dramaturgia pirandelliana neste caso? A resposta já foi encontrada por Grotowski em seu Teatro Pobre: o personagem é um instrumento, que nos serve para estudar o que está por detrás das nossas máscaras diárias, um instrumento revelador da essência mais íntima de nossa personalidade. E é isso, continua o mestre polaco, que o ator/performer oferece em sacrifício, tornando-a presente.

Em nossos laboratórios de pesquisa e mergulho no universo pirandelliano, o atuante será convocado a trabalhar sobre suas reminiscências pessoais, sobre acontecimentos importantes e concretos de sua vida. O personagem será uma ferramenta para revelar o que há de mais obscuro no ator.

O treinamento terá como base o método Viewpoints, uma ferramenta de trabalho sistematizada por Anne Bogard, que, a partir do estudo consciente da relação do corpo com o espaço-tempo, propicia ao atuante um caminho para a criação, tendo como alicerce o seu corpo, sua corporeidade, com o objetivo de se atingir o estado de prontidão aguda, de percepção do instante presente. Nosso objetivo aqui é treinar o atuante para agir na cena de forma verdadeira e espontânea, a partir do uso e da observação do tempo e do espaço, elementos fundamentais da dramaturgia.

Nesta primeira semana trabalhamos com algumas noções de VPs de tempo e de espaço, praticando exercícios de conscientização destas duas categorias. Os Vps de voz serão estudados mais para frente. No dia 26 de março propomos exercícios direcionados para a percepção dos seguintes elementos através do corpo em movimento no tempo e espaço: tempo, duração / arquitetura, forma, topografia. Nosso objetivo é despertar o atuante para formas e timings diferentes do cotidiano. Os Vps de tempo são divididos nas seguintes categorias: tempo/duração/resposta cinestésica/repetição. Os Vps de espaço se dividem nos seguintes elementos: forma/gesto/arquitetura/topografia/relação espacial.

O elemento tempo é a velocidade de algo, isto é, o quão rápido ou o quão lento uma ação, ou gesto, ou deslocamento, pode se dar. Essas diferentes velocidades criam metáforas temporais que imprimem diferentes estados de percepção, tanto no atuante, quanto no espectador. O elemento duração é o quanto uma coisa dura antes de mudar. Uma determinada ação, ou um gesto, pode durar mais tempo que outro. Esta seleção gera intensidades e valores diferenciados à ação realizada, que por sua vez gera resultados sensoriais também diferenciados. A repetição de um movimento, que pode ser interna, dentro de seu próprio corpo, ou externa, que repete a forma, gesto, tempo, de algo exterior ao corpo do ator. O elemento resposta cinestésica, que pode ser tátil, visceral ou emocional, não foi trabalhado neste dia – ainda que seja um elemento sempre presente em qualquer ação ou composição física.

O elemento espaço é toda distância ou aproximação de um corpo com outros corpos. A relação espacial, perto, longe, muito perto, muito longe, compõe uma história, transmite um sentimento. O elemento arquitetura nos Vps é o uso do espaço real pelos corpos em movimento. O atuante deve treinar dialogar com espaço, realizando uma troca simbólica efetiva com o espaço real, absorvendo-o e/ou reconfigurando-o. O elemento topografia se trata da jornada, isto é, de que forma o atuante atravessa de um ponto ao outro, sua trajetória em relação à trajetória do outro. O elemento forma, ou as composições podem ser abstratas, expressivas ou cotidianas; isolada, com outros corpos, com o ambiente. O elemento gesto, ainda não foi trabalhado, pela sua complexidade e desdobramentos;

Partindo desta nomenclatura propomos alguns exercícios para despertar os Vps adormecidos pelo uso não consciente dos elementos tempo e espaço em nosso dia-a-dia.

COMO SE ATRAVESSA DE UM PONTO A OUTRO?

A partir deste questionamento, dividimos a turma – Sara, Nathalia, Hikari, Henrique, Renata, Bruno, Anathalia, Thiago, Alexandre, Giovanna, Alex, Luciano, Gabriel, Ricardo, Augusto, Alessandra, Davis, Natalia, Amanda, Jefferson, Yan, Jesse, Tatiana, Marília, Camila – em 4 grupos. Para cada grupo pedimos que individualmente construíssem uma trajetória dentro do espaço real – a sala de ensaio. Pedi para que se concentrassem estudando, a partir do corpo, e com a atenção desperta, a arquitetura do espaço: sua textura, cor, ruídos, luz, etc., observando o que a sala de ensaio provocava em seus corpos e como essa arquitetura poderia intervir em sua corporeidade, sem se preocupar, inicialmente, com a jornada do outro. Após o estudo e a definição de uma partitura física, possível de ser repetida, pedi a um dos atuantes mostrar a sua jornada individual ao grupo, repetindo a partitura no mínimo 3 vezes. A partir daí cada atuante, em seu tempo, estava convocado a provocar uma interferência na jornada do outro, mas tentando manter certa integridade em sua trajetória primeira. Se o objetivo era a composição com o outro, havia de se ter o cuidado para a interferência não ser tão violenta a ponto de dissolver as partituras iniciais.

Após o primeiro estudo de composição, pedi a repetição do exercício, desta vez destacando alguns atores de cada grupo, provocando a atenção deles para uma nova situação de interferência: a música. A primeira dupla, composta por Luciano e Yan, na primeira tentativa, sentiu o exercício se esvaziar, em função do não desdobramento da partitura: o núcleo da composição era a relação estabelecida entre batidas com a mão no chão de madeira pelo Yan, e o deslocamento instável de Luciano pelo espaço. A segunda tentativa do exercício, já se mostrou mais rica em desdobramentos do elemento de composição estabelecido na improvisação. Observou-se nitidamente uma corporeidade em Luciano que transmitia uma contradição de vontades, ora o desejo de seguir as batidas da mão do Yan ora o desejo de abandonar Yan e continuar sua trajetória inicial até o grande lustre da sala de ensaio. Outro elemento que se percebeu no exercício foi uma inesperada troca de função entre os atuantes. Em determinado momento Luciano deu batidas com a mão no chão e Yan reagiu imediatamente provocando um equilíbrio instável em seu deslocamento. Para a audiência, estabeleceu-se entre Yan e Luciano uma forte relação de confiabilidade, construída a partir da corporeidade e da relação do corpo com o espaço.

 

Repetimos o exercício desta vez com três atuantes: Alex, Alessandra e Jefferson. A composição aprofundada dos corpos dos atuantes com a arquitetura permitiu um maior desdobramento do exercício relacional entre eles, pois os três abriram seus corpos para uma troca efetiva com o espaço. O deslocamento de Alex repetia a estrutura do chão de madeira da sala, com suas tábuas em diagonal e seus recortes simétricos. Já Jefferson utilizou as paredes da sala de ensaio para dar forma a sentimentos como “medo” ou “sem saída”, comprimindo suas costas contra a parede. Alessandra, por sua vez, focou a composição na distância entre seu corpo e os do Alex e Jefferson, aproveitado sua partitura original para realizar quedas em composição com seus parceiros de improviso.

 

 

Na terceira vez, voltamos a trabalhar com dois atuantes: Jesse e Renata, que individualmente tinham uma partitura corpo/arquitetura muito bem estudada, mas ao realizar o trabalho em dupla acabaram por dissolver suas próprias partituras a favor de uma maior troca física entre eles. O estudo corpo/arquitetura se esvaziou dando lugar a uma dança de corpos no espaço.

O último treinamento foi realizado com todos os participantes do quarto grupo: Hikari, Thiago, Augusto, Sara, Natália. A música escolhida, como estímulo/interferência externa, dificultou bastante o exercício, o que me leva a pensar que o próximo treinamento deverá ter como foco o elemento resposta cinestésica.

 

Martha Ribeiro

 

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[2] Profa. Adjunta da UFF. Artigo inédito, postado em 30 de março de 2013. 

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